quarta-feira, 9 de junho de 2021

Manifesto da 22ª Marcha do Orgulho LGBTI+ de Lisboa

Design: Luís Covas

Desconfinar direitos, afastar preconceitos


No ano de 2020, a má gestão da crise de saúde pública vivida atualmente e a insuficiência de apoios estatais e institucionais dirigidos às populações mais vulnerabilizadas levou à necessidade da criação de uma resposta comunitária, que se desdobrou em diversos esforços por parte da população, incluindo a própria rede de apoio da Marcha do Orgulho LGBTI+ de Lisboa, que durante a pandemia ajudou inúmeras pessoas, por vezes colmatando respostas do Estado.

Este ano voltamos à rua para marchar com mais força pelo que ainda falta transformar.


A pandemia afeta principalmente as populações mais vulneráveis socialmente, pessoas LGBTI+, especialmente pessoas trans e não-binárias, pessoas em condições de vida precárias, das quais destacamos as em situação de sem abrigo, pessoas racializadas, migrantes, refugiadas, trabalhadoras do sexo, pessoas Roma, mulheres, particularmente as mulheres trans (e todas as pessoas que pertencem a vários destes grupos), agravando um conjunto de desigualdades sociais já existentes.

A salvaguarda dos direitos humanos não deve estar refém da aceitação social, deve ser antes um ponto de partida que proteja e contemple todos os grupos marginalizados, que oiça e atenda às suas reivindicações.

Celebramos e recordamos os passos já dados em direção à consagração plena dos direitos de todas as pessoas, desde a descriminalização da homossexualidade em 1982 à lei da autodeterminação da identidade de género, expressão de género e proteção das características sexuais em 2018. Mas há ainda muito por conquistar.

É importante reconhecer que a nossa luta não é isolada e que marcha em conjunto com as lutas antirracista, anticapitalista e feminista.


Este ano focamos as nossas atenções nas consequências da crise sanitária.


A Pandemia forçou inúmeras pessoas a regressarem a contextos familiares inseguros, à permanência e confinamento em ambientes hostis, onde não lhes é possível expressar a sua identidade. Este acréscimo de violência psicológica e física agrava problemas de saúde mental, incidência de suicídio e/ou ideação suicida, numa população que já é estatisticamente mais propensa a estas situações.

Em específico, jovens LGBTI+, pessoas já mais sujeitas a rejeição e violência familiar que pares cishetero, perdem durante a pandemia as suas redes de apoio e locais de refúgio, o que agrava o seu isolamento e a sua saúde mental. No  caso  das  pessoas  trans  e  intersexo, estas situações são mais prevalentes e gravosas. O isolamento pode ter efeitos de retrocesso em processos de auto-identificação, auto-descoberta e auto-aceitação, particularmente nos contextos de isolamento em ambientes hostis.

Jovens LGBTI+ têm sentido de forma especialmente marcada o alastramento do discurso machista e lgbti+fóbico, com a penetração de retórica de extrema-direita no seio das suas famílias.


Denunciamos o discurso preconceituoso, xenófobo e racista em instituições de ensino portuguesas, exigimos uma descolonização do ensino. Denunciamos também a falta de atenção destas instituições para com assuntos LGBTI+, xenofobia e racismo.


Reivindicamos melhores serviços de acompanhamento psicológico nas instituições de ensino, do básico ao superior, incluindo apoio especializado em questões LGBTI+. Reivindicamos, no ensino superior, uma capaz resposta de apoio social a estudantes internacionais, pessoas não abrangidas pela lei que regulamenta a política de ação social e portanto desprotegidas.


As pessoas seniores LGBTI+ têm de se tornar uma prioridade efetiva da comunidade, pois não deveria existir um prazo de validade para se viver em pleno.

Pessoas seniores LGBTI+ existem, não têm de voltar para o armário e têm toda a liberdade e direito a manifestar a sua identidade, expressão de género, orientação sexual e a sua sexualidade em toda a sua extensão, tal como qualquer outra pessoa. 

As pessoas idosas LGBTI+ sofreram com os sucessivos confinamentos sociais que cortaram ligações e redes de apoio e empurraram muitas pessoas para o silêncio e a penumbra. São inexistentes as estruturas de apoio social especificamente para seniores LGBTI+, como lares ou centros de dia, e as restantes não garantem os seus direitos. Estes equipamentos sociais são importantes para que esta comunidade possa usufruir da melhor qualidade de vida possível. As respostas institucionais tardam em chegar, ano após ano. 

Exigimos mais apoio para a população sénior LGBTI+.


A crise social vivida veio expor e agravar um conjunto de desigualdades sociais no que diz respeito ao acesso à habitação condigna para todas as pessoas. 

Os abrigos temporários não acautelam questões relacionadas com a nossa orientação sexual ou identidade de género.


Para lá da violência, as pessoas que ficam em situação de rua ou de sem-abrigo sofrem frequentemente de discriminação nos serviços de acolhimento por profissionais que as acompanham, e por utentes desses serviços.

A violência e o preconceito são normalizados e desvalorizados pelas pessoas técnicas e redes de apoio que acompanham os casos.

É insuficiente a resposta institucional às necessidades da nossa comunidade. Exigimos soluções de habitação, seja habitação permanente, sejam centros de acolhimento que respeitem e garantam a proteção das pessoas. 


As respostas sociais nas quais o Estado tem investido – seja a nível central, seja através de autarquias locais e sistemas de segurança social – foram desenhadas exclusivamente para estruturas familiares normativas.

Famílias sem laços de sangue ou vínculos legais continuam a não ser abrangidas pelos apoios estatais e institucionais, invisibilizando e apagando as pessoas LGBTI+ e não-monogâmicas, que muitas vezes formam a sua própria família com base em laços coabitacionais e de ajuda mútua.


É importante ir desenvolvendo mecanismos legais de proteção de famílias que não a estritamente normativa, que compreendam conceitos mais alargados de família, mais estruturas relacionais e relacionamentos não-monogâmicos. Queremos que sejam reconhecidos os laços que estabelecemos para além de ligações de sangue e românticas. 


Uma das questões que mais se agravou durante a pandemia foi a precarização laboral.

Os despedimentos e diminuições de rendimentos continuam a aumentar, afetando principalmente as pessoas com vínculos precários. A celebração social de pessoas trabalhadoras consideradas essenciais foi apenas propagandista, não tendo correspondido a melhorias nas suas condições laborais.


As pessoas trabalhadoras do sexo, não reconhecidas nem protegidas legalmente, são especialmente afetadas nesta altura em que a impossibilidade de trabalhar e a quebra drástica de rendimentos as deixou ainda mais precarizadas e marginalizadas. É tempo de se iniciar um debate público e justo pela descriminalização total do trabalho sexual e reconhecimento dos direitos das pessoas que o exercem. Temos de combater visões conservadoras e abolicionistas, e aliarmo-nos às pessoas que exercem trabalho sexual nas suas demandas de condições laborais e estabilidade.


Pessoas que entram em Portugal continuam a ser tratadas de forma diferente consoante a sua origem. A população trabalhadora migrante, especificamente a proveniente de países tipicamente considerados em desenvolvimento, é abandonada sem qualquer tipo de apoio do Estado, ficando isolada, por vezes sem falar a língua e sempre sem documentação.

Denunciamos as inúmeras situações de exploração da força de trabalho migrante no campo e nas cidades. Lembramos as situações recém-expostas no sector agrícola, de pessoas sub-remuneradas, colocadas em locais sobrelotados e sem qualquer possibilidade de cumprimento das normas sanitárias. Lembramos também a colocação de requerentes de asilo em estruturas habitacionais igualmente sem condições. É ultrajante que estas situações só sejam preocupantes para o Estado quando surgem surtos de COVID-19.

Precisamos de estruturas que, face a uma crise de saúde pública, consigam atenuar as consequências sociais e económicas nas populações mais vulneráveis.


Continuamos a testemunhar diariamente a crescente presença e subida da extrema-direita, ancorada em discursos populistas que ameaçam populações Roma, racializadas, LGBTI+ e minorias religiosas, e todas as pessoas que em si conjugam estas diferentes interseções. Portugal tem sido lugar constante de visitas e reuniões da extrema-direita internacional, normalizadas pelos media, esquecendo que se tratam de ideologias de ódio, proibidas pela nossa Constituição. Ao mesmo tempo, a direita partidária, até a que se posiciona como moderada, compactua e não se inibe de criar alianças com um partido de ideologias de extrema-direita, cuja legalidade é, no mínimo, questionável.


Condenamos a violência policial e os ideais racistas e xenófobos enraizados nas forças de segurança. Uma polícia que atua de forma diferente consoante a situação, que é permissiva perante ajuntamentos desportivos mas agressiva em protestos, especialmente na presença de pessoas racializadas. Não queremos que as tatuagens de cariz racista sejam removidas, queremos a remoção de agentes racistas das forças policiais.


O racismo em Portugal é estrutural e será impossível desenraizá-lo enquanto não lidarmos cara a cara com o mito do bom colonizador e olharmos para a nossa história com o distanciamento e olhar crítico que permite reparações históricas. Exigimos um ensino desmistificado e inclusivo, que permita dignificar a diversidade da população.


Apesar do problema reconhecido e persistente da subnotificação de casos, a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial verificou nos últimos anos um forte aumento de denúncias de discriminação em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem em Portugal, indicando um aumento da radicalização e dos discursos de ódio e de extremismos xenófobos e racistas em Portugal.


Também na saúde continua a existir discriminação e negligência de pessoas LGBTI+.

A lei n.º 38/2018 mandatou à Direção Geral de Saúde a elaboração, no prazo de 270 dias, de normas técnicas dedicadas a questões relacionadas com a identidade de género, expressão de género e características sexuais das pessoas. Passados dois anos e mais de 50 normas de saúde lançadas desde o fim deste prazo, aguardamos ainda que a DGS disponibilize este documento e deixe de relegar a saúde das pessoas trans e intersexo para último plano.


O acesso aos cuidados de saúde para pessoas trans, no Serviço Nacional de Saúde, é um processo labiríntico e moroso. Persistem longas listas de espera na Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual (URGUS) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Além disso, continuamos reféns da Ordem dos Médicos e de preconceitos sobre os nossos corpos e identidades trans para aceder aos cuidados que precisamos, ainda com possibilidades truncadas pela ideia de uma narrativa única e universal da pessoa trans que tem que seguir os mesmos processos médicos, cirúrgicos e binários.

Exigimos acesso e acompanhamento médico adequado, livre de preconceitos e discriminação, para que pessoas trans possam usufruir de cirurgias e hormonas de acordo com a sua vontade. 


Os serviços e cuidados de saúde para pessoas trans são escassos e encontram-se restringidos aos maiores centros populacionais, limitando, por vezes totalmente, o acesso das populações periféricas a cuidados de saúde capazes e adequados. Ainda assim, celebramos o anúncio de uma nova unidade de saúde multidisciplinar no Porto, e esperamos que venha reduzir as listas de espera para estes serviços.


Os cuidados de saúde de proximidade não estão preparados para pessoas LGBTI+, o que condiciona o seu acesso a atendimento e tratamento condigno e habilitado para reconhecer a sua identidade. Apesar da clarificação pelo Instituto Português do Sangue e Transplantação, esperamos ver o direito à doação de sangue respeitado, independentemente da orientação sexual. 


Três anos após a entrada em vigor da norma da DGS que regulamenta a utilização da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) como estratégia de combate à transmissão da infeção pelo VIH não podemos fazer um balanço positivo. Apesar de muitas pessoas já estarem a beneficiar desta forma de prevenção contra o VIH, é, no entanto, falacioso dizer que a PrEP é acessível em Portugal quando continua restrita a uma minoria de utentes, já que está limitada ao contexto hospitalar, não se recorrendo às entidades de base comunitária. Atualmente as consultas nos hospitais de Lisboa estão entupidas e estão com um tempo de espera que vai de 6 meses a mais de 1 ano.

As pessoas migrantes em situação irregular ou que não sejam titulares de documento de direito que lhes confira igualdade de tratamento como pessoas beneficiárias do SNS continuam a não se poder candidatar à PrEP.

O acesso à Profilaxia Pós-Exposição (PPE/PEP) continua limitado a um reduzido número de utentes, enquanto persistem os julgamentos morais, a inconsistência no acesso e a quebra de sigilo profissional.

O fim do VIH, possibilitado pelos avanços médicos das últimas décadas, continua refém da ausência de vontade política e de investimento público e da inexistência de uma verdadeira política integrada de prevenção e de combate à discriminação. 


Exigimos a formação de profissionais de medicina, de enfermagem e dos serviços administrativos, para atender da melhor forma as nossas necessidades no âmbito da saúde reprodutiva, sexual e mental. Exigimos que as denominadas “terapias de conversão” sejam criminalizadas. Exigimos uma linguagem de saúde inclusiva, e que se foque fora de uma ideia binária de género.


Falta a implementação nacional do programa de educação sexual escolar que já vem previsto na lei desde 1984 e ainda está por cumprir, bem como a disponibilização desta informação para todas as pessoas fora do sistema educacional. 

É necessário providenciar uma formação sobre temáticas LGBTI+ adequada e completa a quem ensina.

Só com uma educação sexual completa alcançaremos um ambiente de compreensão e aceitação da diversidade humana, a nível de características sexuais, sexualidade, identidade e expressão de género.


Persiste o mau atendimento nas conservatórias do registo civil relativamente ao procedimento de mudança legal de nome e marcador de sexo, com poucas exceções. As pessoas trans, residentes em Portugal e no estrangeiro, vêem-se obrigadas a pedir ajuda a associações devido ao desconhecimento por parte de pessoas funcionárias do registo civil e dos postos consulares para exercer o seu direito à autodeterminação.


Cabe ao Estado garantir direitos de autodeterminação e autonomia corporal de todas as pessoas, garantir o direito e implementação de processos de consentimento informado das pessoas intersexo na protecção de características sexuais, um reconhecimento social das pessoas não-binárias, ao regulamentar e propagar o uso de linguagem neutra e retirar o marcador de sexo dos documentos oficiais em que este consta.


Continuamos a reclamar a Introdução da Identidade de Género, da Expressão de Género e  das Características sexuais no art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa como motivo pelo qual nenhuma pessoa pode ser discriminada. Assim como o alargamento da Lei n.º 38/2018 a jovens com menos de 16 anos e a pessoas sem nacionalidade portuguesa, permitindo um acesso pleno à autodeterminação legal de género.


Perante a crise social provocada pela pandemia, reclamamos que a estratégia económica de recuperação deixe de se basear num modelo único de desenvolvimento apoiado no fomento do turismo de massas que gentrifica as cidades, prejudica o ambiente e marginaliza as populações. 

Perante os desafios que se aproximam, um Plano de Recuperação e Resiliência que inclua o turismo deverá sempre abandonar o pinkwashing e assumir políticas verdadeiramente inclusivas no que toca ao turismo LGBTI+. Portugal não é “LGBT+ friendly” se o for só para as pessoas mais normativas e com poder económico.

Portugal não se pode promover como um país seguro para pessoas LGBTI+ enquanto promove a precarização do trabalho na área do turismo e torna economicamente inviável viver nas suas cidades, afetando principalmente as minorias. O caso de lesbofobia ocorrido no Jardim do Arco do Cego é um lembrete de como o usufruto do espaço público ainda não é garantido para as pessoas LGBTI+.


Da mesma forma, reclamamos uma marcha do orgulho política onde não haja espaço para a comercialização nem para o uso da bandeira arco-íris como encobrimento de violações da autodeterminação de povos e de direitos humanos. A nossa bandeira não é imagem de marca para vender mais, nem fachada para lavar a cara.


Vimos de forma clara, mais uma vez na história da nossa comunidade, as consequências da privatização do desenvolvimento científico no que toca à saúde. Vidas reféns de patentes farmacêuticas, num capitalismo que de novo dita que vidas importam dependendo da sua localização geopolítica. Já nos anos 80, a epidemia da SIDA demonstrou os obstáculos que as patentes privadas e os direitos de propriedade intelectual colocavam à produção de antiretrovirais, obstáculos que excluíram os países do sul do mundo, tal qual se verifica hoje com as vacinas contra a COVID-19.

Junto com isto, a criação de certificados de vacinação como mais uma forma de controlo da livre circulação de pessoas, que deveria ser um direito garantido, irá apenas exponenciar os desequilíbrios globais.

A insistência numa ideia de fronteiras restritivas continua a deixar milhares de pessoas a morrer no mediterrâneo e enjauladas em centros de detenção. Pessoas migrantes continuam a ser vítimas de redes de tráfico de uma nova escravidão, seja em produções agrícolas para nos sustentar as necessidades alimentares, seja em redes de entrega de comida e outros bens.


A União Europeia assiste desatenta e atua com fraco posicionamento político enquanto Estados-membros se qualificam com o eufemismo “zonas livres de ideologia LGBTI+”, quando deveriam ser julgados por perseguir pessoas com base na sua orientação sexual ou identidade de género e por fomentar o crescimento e enraizamento de discursos de ódio. 


Hoje mais que tudo, é importante celebrar o direito a dar as mãos publicamente, livre de preconceitos, enquanto marchamos pelas ruas para desconfinar direitos e afastar preconceitos.